"Quando comecei a escrever, com nove ou dez anos, eu escrevia com o que passei a acreditar ser a única verdadeira inocência – um ato sem responsabilidade. Pois basta observar crianças muito pequenas brincando juntas para ver como o impulso de influenciar, exigir submissão, defender a primazia trai a presença do ‘pecado’ humano natal, cujo castigo é a carga da responsabilidade. Eu estava sozinha. Nem sabia como meu poema ou história saíam de dentro de mim. Não era dirigido a ninguém, nem lido por ninguém”, escreve Nadine Gordimer em Tempos de Reflexão – de 1954 a 1989, coletânea que abrange mais de 40 anos e que a Biblioteca Azul, selo da Globo Livros, está lançando em dois volumes (o segundo trará passagens dos anos 1990 e 2000). Neste primeiro volume, Nadine demonstra como se tornou uma das mais importantes vozes contra a segregação racial, como cooptou pessoas, por meio de argumentos inteligentes e convincentes, para debater sobre o racismo: “É o mal – a danação humana no sentido do Antigo Testamento –, e nenhum compromisso, assim como nenhum sacrifício, será demasiado grande na luta contra ele”, disse. Para ela, o escritor deve ter a liberdade de escrever e divulgar o que vê em sua sociedade, e ele não pode – ou não deve – se submeter aos interesses públicos de “interpretação política, valores morais e gostos”. A verdade, diz, tem de ser escrita de qualquer maneira, seja ela referente a uma revolução ou a um acontecimento diário da vida do escritor. A autora é, portanto, uma feroz defensora do fim da censura. “Sou alguém que sempre acreditou e ainda acredita que nunca nos livraremos da censura enquanto não nos livrarmos do apartheid. A censura é a arma do controle mental, tão necessária para manter um regime racista quanto aquela outra arma da repressão interna, a polícia secreta.” Na África do Sul, ela diz, a relação da política com a literatura tem várias implicações, como a “sublevação cultural dos negros sob a conquista”, o que faz escritores se exilarem, e a consequência imediata desse ato é que há um “desenvolvimento subsequente de seus escritos na consciência alterada do exílio”. E diz mais: como “alguns livros são proibidos, os sul-africanos nunca os leem. Mas tudo o que é e tem sido escrito pelos sul-africanos acaba sendo influenciado, no nível mais profundo e menos controlável da consciência, pela política racial”. Às vezes de forma poética, às vezes de modo cru, Nadine conta suas impressões por lugares tão distintos quanto o Egito ou o Congo. Sobre o Cairo, que visitou em 1959, sob o governo de Gamal Abdel Nasser, estranhou que uma cidade tão cosmopolita estivesse “tão morta”: “Os planos industriais recém-nascidos de Nasser ainda não estavam suficientemente em andamento para atenuar as condições sociais de milhares que vivem de biscates, que esperam tomar parte em trabalhos desse tipo, ou simplesmente aguardam a oportunidade de transformar um serviço absurdo e indesejável num trabalho – a manifestação urbana de um país superpovoado que está aumentando seu número de habitantes ao ritmo desastroso de 1 milhão a cada dois anos”. Em O que significa para mim ser sul-africana, título de um dos capítulos do livro, e que fez parte de uma palestra dada na Universidade da Cidade do Cabo, Nadine diz que esse “é um fato de importância profundamente emocional” e que “os primeiros anos de vida são carregados dentro da criança para sempre”. Durante as viagens que faz, seja pela Europa ou pela América, “ou em qualquer lugar distante da África”, a escritora diz que sua visão de casa é o “veld [estepe sul-africana] queimado ao redor de montes de dejetos das minas e morros de refugos das minas de carvão. Não é uma visão romântica. Não é uma cena que a maioria dos europeus reconheceria como África. Mas é África”. É a África particular de Nadine.