Romance perturbador, Os lança-chamas, do argentino Roberto Arlt (1900-1942), se folheado ao acaso, poderia fazer alguma alma incauta pensar que está lendo uma peça de Nelson Rodrigues (1912-1980): a sexualidade inquieta, a tortura psíquica e a impossibilidade de caber em si mesmo caracterizam os personagens atormentados dos dois autores, isso para não falar na reconstrução da linguagem coloquial, sem purismos. Curiosamente, ambos os escritores se iniciaram como cronistas policiais, ainda bem jovens, e aprenderam com a violência criminosa algo sobre a natureza humana. Mas diferente do tragediógrafo brasileiro, que exterminava seus personagens monstruosos ao final das peças, Arlt é um escritor de um sadismo sem-par, capaz de sustentar por centenas de páginas o mundo em convulsão de seus personagens, inclusive transbordando-os de um livro para o outro.
Assim, Os lança-chamas (1931), anunciado como a conclusão do romance Os sete loucos (1929), é menos uma continuação do que uma expansão da obra anterior: lá estão os mesmos personagens que, revisitados, são apresentados em mais matizes e contradições. O atormentado inventor Erdosain, que se iniciara no crime como uma forma de autoconhecimento, agora nos vai sendo reapresentado em cada vez mais aspectos: primeiro o vemos seduzido pela maldade, investigando os limites da degradação para si mesmo e para as mulheres que o cercam; logo em seguida, o narrador o reumaniza, mostrando-o em seu sofrimento psíquico, em sua infância conturbada, com gestos de grandeza e pequenez sem igual. A maestria de Arlt consiste, neste romance, em tornar impossível o julgamento por nós, leitores, de seu protagonista, que nos causa compaixão e repulsa página após página.
Nem por isso estamos diante de um romance que poderia ser chamado psicológico; não falta ação no universo de Arlt: trata-se de pôr em prática um plano delirante de dominar o país a partir de um movimento liderado por um Astrólogo e bancado com dinheiro de prostituição.