A obra de Jorge Cardoso não tem par. Isso não é um juízo de valor estético. É uma observação prática mesmo. Normalmente, você começa a ler um livro e sua cabeça, instintivamente, começa a vasculhar aquele velho baú dos afetos em busca de uns pilares, de umas vigas, de um pau de sebo que seja, pra você escalar o novo texto que se anuncia; ou pelo menos pra se escorar enquanto o lê. Com os contos de Jorge, a cabeça abre o baú sem acender a luz do porão, e você cai lá dentro, tateando e com medo de não sair mais, sem nada em que se apoiar.
Há uma tensão por baixo das linhas, algo que não está no texto e você pode quase tocar; como a sensação de estar sendo seguido quando se atravessa um corredor vazio. É como se o texto fosse uma isca -- uma armadilha! --, pra você ficar distraído enquanto o que é real e está escondido sob as palavras crava os dentes no seu pescoço. Na verdade, não. São tentáculos, e eles estão ao redor de todo o seu corpo.
Prepare-se para vinte e quatro contos sobre o que foge do seu controle -- do seu mesmo, que está prestes a lê-los --, porque o medo que os textos espelham sempre nos acompanharam, cravados no nosso DNA como um rabo atrofiado, o rabo fantasma que vemos de relance quando o instinto toma as rédeas da ação durante as urgências e você range os dentes. São histórias de possessões, de rituais, de feitiços, de transfigurações, de crimes desse mundo que na verdade são bênçãos em outro. Comum a todos eles, apenas a violência sem saída que parece definir a condição dos homens. Os personagens, via de regra, estão passando por maus bocados: empregos ruins, casamentos falidos, fihos indesejados de um lado, pais inconsequentes de outro; mas a epifania que poderia vir de um contato com o sobrenatural, tão comum como recurso narrativo das histórias de horror, não dá as caras por aqui. Ou melhor, dá sim, mas sempre como compreensão da derrota.